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Entrevista com Prof. J. J. Calmon de Passos
 

Veja abaixo a entrevista que a Academia Brasileira de Direito Processual Civil realizou com o ilustre processualista baiano, J. J. Calmon de Passos, sobre a sua perspectiva da atual conjuntura do país.

ABDPC - 1ª) Prezado Professor Calmon de Passos, o Brasil vem passando por uma fase extremamente complexa de sua história política e, conseqüentemente, jurídica. As denúncias de corrupção, a criação de CPI’s, dentre outros, são fatos que vem polarizando a atenção de todos. Na sua perspectiva, a que fatores tais acontecimentos podem ser atribuídos?

PROF. Calmon - Há imperdoável má fé ou lamentável ingenuidade pensar que a atual exacerbação “moralista” de alguns políticos é novidade entre nós. O moralismo é um dos instrumentos mais fecundos da manipulação ideológica. Colocando a moral como causa eficiente das instituições, encobrimos a perversidade e a disfuncionalidade dessas instituições, pensadas, formalizadas e efetivadas sempre no sentido de se manter o sistema de dominação predominante em determinado momento histórico.

Quando ocorreu o “impeachment” de Collor, em entrevista na televisão, indagado sobre se não me sentia orgulhoso por termos, sem derramamento de sangue e sem abalo das instituições, afastado um presidente corrupto, afirmei, causando surpresa e escândalo, que meu civismo não vibrava, um mínimo que fosse. E isto porque, para mim, lembrando a história de Ali Babá, o que acontecera fora que os 40 ladrões tinham-se revoltado com a ousadia de Ali Babá, pretendendo compartilhar do que era deles e em quota nada razoável. O futuro provou que estava certo, tanto que os 40 ladrões sobreviveram e agora tentam novamente fazer a devida triagem, afastando os arrivistas.  Já não é mais um problema de Ali Babá e eles, agora é deles, delinqüentes cinco estrelas, que habitam em condomínios fechados, raivosos com a ousadia de alguns malfeitores da periferia que pretenderam se estabelecer nas zonas nobres da cidade. Se há um slogan  capaz de traduzir bem tudo que está ocorrendo, ele será este: quem nasceu para batedor de carteira não pode almejar o nível universitário da delinqüência. Vêm, portanto, que, na minha ótica, o problema é apenas de ajustamento na participação da espoliação da grande massa do povo brasileiro sem haver perturbação das regras do jogo que chegaram para nós com Pedro Álvares Cabral e graças a uma elite simplesmente genial vem sendo mantidas, mais ou menos camufladas, nos já 505 anos de nossa história.



ABDPC - 2ª) O Brasil, como todos sabem, tem pouquíssima experiência com a democracia. Desde a fundação da República, muitos foram os anos durante os quais a população esteve submetida ao controle de militares ou ditadores e poucos aqueles em que se permitiu a participação no processo político. Será possível estabelecer alguma relação deste fato com o atual quadro de crise institucional e política que se vivencia?



PROF. Calmon - Não creio em milagres. E no plano da história dos povos, muito menos. Assim como, ao longo de nossa vida, vamos enrijecendo ou fragilizando o nosso corpo e clareando ou obscurecendo a nossa mente, na dialética inelutável entre o que nos condiciona – a sociedade que nos faz, e nosso esforço pessoal de nos moldar e assim moldar a sociedade que nos faz, também como povo somos prisioneiros do que o passado nos fez e temos que nos comprometer com o futuro que pretendemos ter. Sem a compreensão lúcida do “ontem” o amanhã é mais aleatório do que ele necessariamente é.

Nossos males não foram gerados no “útero” da República. Eles têm a idade de nossa história – 505 anos. Fomos e somos marcados pela tragédia de sermos um país com população, mas sem povo.  Já escrevi sobre isto. Infelizmente a dimensão desta entrevista não permite que me alongue. Sintetizando ao máximo: durante trezentos anos fomos apenas uma multidão de negros e índios excluídos da vida política, uma classe média rala e frágil, caudatária ou do poder econômico ou do poder político hegemônico, e uma elite que sempre teve seus olhos e seus interesses econômicos voltados para fora. Viana Moog chamou este sentir-se exilado em seu próprio pais de “mazombismo” Continuamos assim, Nossa elite  já imitou Portugal, a Inglaterra, a França e hoje arremeda os Estados Unidos. Felizmente a Globo, com a sua genial visão de futuro, já iniciou o anúncio do futuro. Começou com a novela “América”; agora vem a “Bang-Bang”, com personagens de nomes ianques; no futuro, certamente virão as novelas complementares: “Não tenham medo my babies, estamos no Paraguai”. E a última, a apoteose de nossa felicidade: “God save América”.



ABDPC - 3ª) E quanto à passividade do povo brasileiro, que a tudo assiste sem manifestar maiores inconformidades, quais são os fatores desta inércia no seu entendimento?


  PROF. Calmon - O que disse respondendo à segunda pergunta esclarece um pouco o que penso no tocante a esta terceira.
Eu me recuso a falar de “passividade” do povo brasileiro. Passivo é quem pode e não faz, Quem não faz porque não pode é impotente. Já escrevi também muito sobre isto. Atualmente tento concluir um livro que intitularei de “Democracia e Poder Judiciário: uma conspiração insidiosa”. Nele eu tento provar que deliberadamente nossa elite sempre manteve o povo inculto, consciente de que o “não saber” é a forma mais decisiva de incapacitação que fragiliza o dominado.  Por força disto, ela sempre foi generosa no enunciar garantias, liberdades, e  direitos, mas sempre com a sabedoria da raposa que convidou a cegonha para almoçar com ela e pôs na mesa uma tigela rasa cheia de leite.
A cegonha, coitada, mal conseguia molhar a ponta de seu bico, enquanto a raposa, usando sua língua como colher, bebia o leite com fartura e gosto.  Nossa elite, até hoje, em todos os arranjos políticos  institucionalizados nos séculos de nossa história, tem agido como a raposa. A última tigela de leite foi a Constituição de 1988. E a partir dela nós, juristas, e principalmente os juizes, nada mais temos feito que iludir o povo brasileiro, desmobilizando-o para a luta política, sob o engodo de que a Direito é a via da emancipação e os tribunais as portas do paraíso.

 



ABDPC - 4ª) Fala-se muito em reformas no Brasil de hoje, tais como a política, a do Judiciário, etc. Para o senhor, qual seria a principal e, talvez, mais urgente de todas as reformas que o Brasil precisa?


PROF. Calmon - Falando da Emenda Constitucional 45, recordei um dos decifradores de nossa história – José Honório Rodrigues. Vou transcrever algo do que disse em um livro clássico: Conciliação e reforma no Brasil: A chave para entender nossa história é a conciliação. Não, porém, uma conciliação em favor do país ou com o sentido do progresso, mas conciliação sempre com o objetivo das elites, dos donos do mando, como ele os denominava, e sempre com vista ao adiamento do debate. Em nome da concórdia, protelava-se sempre o que deveria ter sido feito em favor do progresso e do bem estar de um maior número de brasileiros. O que caracteriza nosso itinerário no tempo é um permanente divórcio entre a nação e o poder, entre o que a sociedade quer e o governo faz, ou melhor, deixa de fazer. A conciliação pela inércia sempre empurrou para o futuro os grandes problemas nacionais. Não se buscou a concórdia pelo respeito à diversidade das idéias, o que se procurou foi diluir e se possível anular o dissenso. Sempre que a minoria dominante se sente ameaçada por opositores ou insatisfeitos, dá-se a conciliação pela cooptação dos insatisfeitos, chamando-os para o circulo interno do poder. O consenso se dá sempre em favor do status quo. Busca-se a conciliação não como meio, isto é, como forma de unir esforços, por concessões mutuas, para resolver problemas, mas como fim, para baixar a tensão política dentro dos grupos dominantes e compartilhando-se o poder.  Nossa elite nunca se reconheceu como parte do povo, nem quis ver como ele era e é, mas como queria que fosse: branco, europeizado (hoje americanizado) educado. E por desprezá-lo marginalizou-o e tudo fez para que não acedesse à plenitude da cidadania. Por isso nosso processo histórico está sempre retardado, é sempre “não-contemporâneo”. A essa nefasta política deve-se o não terem sido resolvidos os grandes problemas brasileiros, que continuam os mesmos, desde a independência e antes dela, a começar pela ocupação e uso da terra. Acrescento, aqui: Enquanto não tivermos povo, no seu sentido político, tudo quanto apelidarmos de reforma será apenas mais uma acomodação de interesses em nível de elite. E se nossa elite acredita que sobreviverá sem necessitar do povo brasileiro, o futuro será um conluio de nossas elites com paises centrais, com vistas à partilha de nosso território entre eles: seremos, no século XXI, o que a China foi no começo do século XX: fatias de soberanias estrangeiras num território que já foi chamado de nação soberana. Assim, a verdadeira reforma será aquela que torne vontade nacional prioritária constituir-se um povo, em sentido político, em nosso Brasil. O que começa por uma educação gratuita, universal, igual e básica para todos. Valendo-me da genial definição que Mario Quintana deu de democracia, digo tudo em poucas palavras: dar a todos  o mesmo ponto de partida e deixar a cada qual, segundo suas possibilidades, determinar o seu ponto de chegada.

 


 

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